not your honey pie

por rafaela venturim

Um, dois, três...

Vitória, sexta-feira, 10 de fevereiro. São 3:22 da manhã. Perdoe, desde já, as minhas lamentações infundadas. Eu sei, não é pra tanto. Eu sei, nem tá tão ruim. Eu sei, o Exército tá nas ruas — passou um carro aqui; eu consigo sentir o vento, mas não sinto frio. Minha pele está em brasa. Já tem uns dias que não durmo direito. Cinco ou seis, acho que perdi as contas. As noites mais longas chegaram por aqui e cada novo dia parece um presente que enviaram sei lá de onde, sem embrulho e daqueles que a gente deixa no cantinho, sem mexer. Não tem cor, não tem luz, só tem o nada. Um quarto cheio de um vazio preenchido pelo nada. As horas se arrastam, tic toc tic toc, e nenhum piu lá fora, tic toc tic toc. Silêncio. Escuridão. A gente deixa pra lá, né? Vai deixando pra depois. Depois a gente se vê, a gente vai se falando, vamos escolher o lugar, a hora, vai me avisando. Hoje? Hoje não dá, não, tenho que resolver umas coisas. Amanhã tem jogo, também não dá. Semana que vem, com certeza. É estranho observar, agora, tudo que eu já deveria ter feito e adiei. Tem um gosto amargo, como um remédio que demora demais pra descer pela garganta. Às vezes, nem desce; fica ali mesmo, travando tudo. Amargo pra mim, ceifador para quem tem o futuro adiado para nunca, morre nas mãos de quem não tem nome ou rosto, morre e passa a ser só mais um dígito na lista oficial.  Eu tô quase me formando, tenho 22 anos, deveria ter algumas certezas nessa vida, mas eu não sei de nada. Eu nunca soube de nada. Eu olho em volta, vejo as paredes do meu quarto, vejo a segurança dos meus privilégios, as pequenezas das coisas que valorizo além da conta, e percebo o quão miúda e impotente sou. Sempre me disseram que eu era forte, alguns me pediram a fórmula. A verdade é que eu vivo desmontando. Desmonto uma, duas, três vezes por dia. O tempo todo. Desmonto atravessando a rua, desmonto passando direto pelo cara dormindo na calçada ao lado dos Correios, desmonto a cada página de jornal sem cor, desmonto quando ouço ódio fantasiado de boa intenção, desmonto a cada briga de ego de quem sabe mais contra quem sabe as respostas até das próprias dúvidas; desmonto quando me refaço, pedacinho por pedacinho. Por vezes, engulo o choro, finjo que nem vi, passo um café; ou digo que vi e grito pro mundo inteiro que vi, que vi sim, que estava ali e não estava certo, que estava longe de ser certo. Não há meio termo: ou guardo pra mim ou quero explodir e quero que o mundo venha junto. Eu quero explodir e quero que explodam comigo. Eu quero explodir e quero que explodam comigo. EU QUERO EXPLODIR E QUERO QUE EXPLODAM COMIGO. E ninguém explode. Ninguém nota. Ninguém vê. Ninguém diz. Morreu mais um, você ficou sabendo? Sim, fiquei. Um absurdo. Pois é, menina, um absurdo. Esse governador é um ditador. É um ditador mesmo, de fato. Semana que vem tem caminhada pela paz, vou de branco. Beleza, vou contigo, passa lá em casa e vamos de bike. Ei, isso não está certo, isso tá errado. Isso não faz sentido. Você não vê? Não se lembra? É 2017 e pode ser que a noite volte a ser regra. Não, não dá. Você não vê? Eu quero explodir e quero que explodam comigo. Mas daqui a uns dias tem Carnaval. Tem Carnaval, vou de sereia, vou jogar glitter na cara e beber muita vodka. Eu só quero poder ir à padaria, daqui a uns dias tem Carnaval. Eu só quero poder ir à academia, daqui a uns dias tem Carnaval. Tem Carnaval, cara, eu vou Incrível Hulk. Incrível, eu não vou, não. Eu não sei se vai ter acabado — e, se acabar, vai acabar de fato? Acabar pra quem? Acabar pra quando? Acabar pra onde? Eu não sei, não. Eu quero explodir e quero que explodam comigo. Eu só quero explodir. Agora. Não daqui a pouco, não semana que vem, não daqui a um mês. Minha pele está em brasa, e faz frio lá fora. Eu não sei preencher o nada. Eu queria saber, Deus, como eu queria saber. Como eu queria ser forte para os que não têm voz sequer para sussurrar. Como eu queria ser grito que preenche o nada. Como eu queria não ser pequena e não ter tanto medo. Mas o medo que tenho é o medo que me faz explodir. É o medo que me faz chorar. Também é o medo que me faz erguer o punho contra tudo que sei que não está certo. Esse mesmo medo corrói o meu peito, que pulsa, que pula, que para e repara que eu sempre fui luta, que eu continuo sendo luta, que muita gente ainda é luta e que é em frente que se caminha. É resistindo que se (r)existe. É explodindo que se refaz. Eu quero explodir e quero que explodam comigo. Agora.


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